Crítica | Paterson

Paterson (Adam Driver) é um motorista de ônibus da linha Paterson na cidade de Paterson, Nova Jersey – sim, ele tem o mesmo nome da linha de ônibus e da cidade e não, isso não acontece por acaso. Todos os dias é acordado por volta das 06:00 pelo clique inaudível do seu relógio de pulso. Beija sua doce e ingênua mulher Laura (Golshifteh Farahani) – a quem adora incondicionalmente – e vai tomar o café da manhã, observado pelo buldogue Marvin (Nellie). Caminha algumas quadras até o trabalho, carregando o almoço em uma das mãos. Sentado dentro do ônibus, escreve poemas em seu caderno secreto até a chegada do seu supervisor Donny (Rizwan Manji), que marca o seu turno e o início da labuta diária. Dirige seu ônibus pelas horas seguintes do dia, entreouvindo atentamente os fragmentos de conversas que se desenrolam em seu coletivo e observando o universo cotidiano da cidade que se revela pela janela. Durante o intervalo, senta em um banco do Parque Histórico Nacional da cidade e observa as Grandes Quedas do Passaic River. No fim da tarde volta para casa, arruma a caixa de correio – que sempre volta a entortar… ou a ser entortada… –, desfruta o jantar insosso preparado pela sua mulher, agradece a ela pelo alimento e por todas as outras coisas e em seguida sai para o passeio noturno com Marvin. Entra no bar de Doc (Barry Shabaka Henley) – deixando o cachorro amarrado no lado de fora –, bebe uma única cerveja, ouve mais do que fala, e depois volta para casa, para os braços de Laura.

Talvez o representante mais perfeito do que poderia ser denominado “filme-poesia” surgido nos últimos anos, Paterson acompanha uma semana na vida de seu protagonista homônimo, de segunda-feira a domingo. Sete episódios, sete estrofes, que oferecem uma estrutura ligeiramente variada com a recorrência de locais, ações e personagens que reverberam sobre seus próprios padrões. Uma rotina cotidiana de uma pessoa ordinária. Simplicidade que transborda nos poemas enxutos e concisos de Paterson sobre caixas de fósforo, moléculas, tempo, amor, vida e para-brisas; versos que observam os menores detalhes do mundo e que surgem belamente, palavra a palavra, grafados sobre a tela enquanto a voz de Driver recita-os pausadamente. Paterson, a cidade-berço dos poetas Allen Ginsberg e William Carlos Williams (de quem Jim Jarmusch foi admirador e amigo) revela-se também a pátria de um poeta anônimo, artista solitário, distante dos saraus, da academia e da torre de marfim – os poemas que Paterson escreve e verbaliza ao longo da narrativa são de autoria do poeta Ron Padgett, um dos nomes mais importantes da poesia norte-americana do século XX.

Uma das sensações de público e crítica do Festival de Cannes em 2016 (tendo sido indicado à Palma de Ouro), Paterson foi dirigido e roteirizado por Jim Jarmusch, autor seminal do cinema independente americano, famoso pelo incomum e cult Estranhos no Paraíso (1984) e por Dead Man (1995), anti-western surrealista em p&b estrelado por Johnny Deep com trilha sonora minimalista de Neil Young. De estilo único, Jarmusch é um mestre na arte da narrativa intimista, construída quase sempre sobre tipos desconexos, desajustados e sem ambições. No longa-metragem estrelado por Adam Driver, Jarmusch narra a sua crônica metódica sobre os sonhos de pessoas comuns através das infinitas repetições, com ínfimas variações, das banalidades cotidianas – a poesia surge de todos os lados como uma tentativa de encontrar excepcionalidade no trivial. Nas vitórias, derrotas e situações sem fim do dia a dia, o seu texto e a sua câmera enxergam poesia na franja dos pormenores – todos os dias são sempre iguais, mas diferentes; quando Laura sonha ter filhos gêmeos, logo Paterson começa a ver (e notar) gêmeos por toda a cidade, de todas as idades, no ônibus ou atravessando a rua, como se vivesse na capital mundial dos gêmeos.

Jim Jarmusch e Frederick Elmes, o diretor de fotografia, arquitetam em Paterson um estilo visual extremamente apurado, banhado em cores definidas e calmas, tão sereno quanto o seu texto e o seu protagonista, capturando momentos de rara beleza em situações das mais prosaicas como imagens refletidas nas janelas do ônibus. O ritmo é preciso. Paterson é um filme litúrgico, por assim dizer. Sua montagem é ritualística, sem pressa, angústia ou reviravoltas surpreendentes: nada disso encontra lugar aqui – a não ser em dois momentos específicos de ação e drama que são, respectivamente, de surpreender e deixar o coração apertado. A edição de Affonso Gonçalves sedimenta uma película tranquila, repetindo os mesmo fatos dia após dia em looping, com novas anedotas encaixando-se pouco a pouco nos hábitos invariáveis de Paterson. Jarmusch evoca um mundo particular nascido de sua própria imaginação e produz um filme que não está apenas repleto de poesia mas que é um poema em si mesmo, ancorado em uma estrutura circular e falsamente simplista.

Enquanto o universo ao redor de Paterson é estático e imutável, o de Laura, interpretada pela atriz iraniana Golshifteh Farahani, é um redemoinho de ideias e fantasias que se altera diariamente. Todos os dias ela acorda lembrando o que sonhou durante a noite – viagens idílicas em elefantes prateados na Pérsia antiga estão entre os sonhos mais normais. Um tanto quanto excêntrica, com uma notável veia artística, impulsiva, entusiástica e apaixonada, Laura não sabe muito bem o que fazer da vida. Laura é uma sonhadora. Pinta quadros, cortinas, tapetes, toalhas, paredes, vestidos e utensílios – tudo que for possível –, sempre em preto e branco, em padrões de xadrez. No sábado irá vender cupcakes na cabine de doces de uma feira de produtores rurais e durante toda a semana já ambiciona um negócio bem-sucedido no ramo, ao mesmo tempo em que imagina-se como uma futura cantora country de sucesso – e estuda música no violão Esteban Harlequin (também preto e branco), presente que pediu e ganhou do marido, que apoia todos os seus anseios. Ela encoraja o talento de Paterson para a poesia: adora ouvi-lo recitar, e há um ano insiste para que ele faça cópias dos seus poemas e deixe o mundo conhecê-los. Os dois se amam: ele a sustenta em cada novo intento, ela celebra nele o dom poético. Na vida ordenada de Paterson, Laura é a desordem, o belo e adorável desalinho que estimula sua criação e aflora suas emoções.

Além dos protagonistas, todos os personagens secundários que orbitam o mundo de Paterson possuem arcos próprios e significativos, apareçam muito ou pouco no decorrer da trama: o Doc de Barry Shabaka Henley conhece todas as histórias da cidade, emoldurando as paredes do seu estabelecimento com fotos de figuras legendárias que nasceram em Paterson, como Lou Costello (1906-1959), da dupla cômica Abbott & Costello, enquanto escuta as lamúrias e histórias dos seus clientes e participa de campeonatos de xadrez (treinando consigo mesmo); as desilusões que o trágicômico Everett (William Jackson Harper) vive quando seu amor pela sua amiga Marie (Chasten Harmon) não é correspondido; o colega de trabalho (Rizwan Manji) que despeja sobre Paterson os seus problemas familiares toda vez que este pergunta “como você está?”; os dois jovens estudantes anarquistas (Kara Hayward e Jared Gilman) que conversam dentro do ônibus; o rapper (Method Man) que ensaia suas letras à noite na lavanderia; a poetisa mirim (Sterling Jerins), que recita um poema para Paterson enquanto espera sua mãe e sua irmã gêmea e acha graça por conhecer um motorista de ônibus que gosta de poesia; o misterioso poeta japonês (Masatoshi Nagase) que surge na vida de Paterson oferecendo-lhe uma página vazia e muitas possibilidades e aquele que é o melhor personagem de todos: Marvin, o buldogue. Interpretado por Nellie (falecido logo após a produção do filme), que recebeu a Palm Dog em 2016, premiação alternativa em Cannes para melhor “performance canina em live-action ou animação“, o simpático cachorro rouba a cena, expressivo e matreiro, sendo um dos responsáveis por chacoalhar a narrativa em seu terço final, quando Paterson e Laura saem para jantar e ver um filme de terror antigo no cinema.

Um dos atores mais promissores da sua geração e vivendo uma carreira em contínua ascensão, Adam Driver é o destaque absoluto de Paterson, visivelmente confortável no papel-título. Extremamente alto, esguio e desengonçado, Driver parece uma pessoa normal – e encarna Paterson dessa forma, até mesmo no jeito de andar. Uma atuação fantástica que exala honestidade por todos os poros. Paterson é um observador. Não reclama da sua vida suburbana, não é revoltado nem frustrado; gosta do seu trabalho e não vê valor algum naquilo que pode alterar significativamente a imutabilidade da sua existência – não tem smartphone por opção, e quando seu ônibus sofre uma pane elétrica vê-se obrigado a se comunicar com a empresa através do telefone emprestado por uma passageira mirim, em uma das muitas cenas hilárias do longa-metragem. Vê em William Carlos Williams um modelo literário e existencial, emulando o seu estilo. É uma antítese do poeta estereotipado. Não é temperamental, não possui vícios, não é um gênio, não é boêmio – suas idas ao bar não são motivadas por melancolia ou tristeza e nunca se perdem em excessos. Driver preenche seu personagem com tonalidades tão líricas quanto verdadeiras, celebrando a riqueza que há por trás da monotonia.

Em seu trabalho como motorista de ônibus, Paterson vivencia um silêncio prolongado e uma solidão pública – seu isolamento é uno com o mundo. Ele não exerce um trabalho em grupo, mas ganha a vida em uma atividade que não atrapalha sua expressão intelectual. Sua paciência monástica e a generosidade com que aceita as circunstâncias da vida encarnam uma visão da arte como a prática das almas humildes e retas. A sua vida trabalhadora é a arte em si mesma. A banalidade tediosa da rotina diária adquire contornos encantadores em seu inspirado universo contemplativo.

Paterson é diferente de tudo que você pode encontrar no cinema atualmente – um presente maravilhoso nascido da inventiva mente de Jim Jarmusch. Transpira poética e simplicidade e exala doçura e sensibilidade. É a prova definitiva de que o lirismo é capaz de estabelecer uma morada eterna em um simples registro ordinário do cotidiano. Construído como um poema e alicerçado em um protagonista singular, Paterson é um filme belo e delicioso, emocionante e espirituoso, cômico e dramático, uma deslumbrante, irresistível e modesta ode à lentidão e à banalidade da vida cotidiana.

Paterson (Paterson) – EUA/Alemanha/França, 2016, cor, 118 minutos.
Direção: Jim Jarmusch. Roteiro: Jim Jarmusch. Música: Carter Logan. Cinematografia: Frederick Elmes. Elenco: Adam Driver, Golshifteh Farahani, William Jackson Harper, Chasten Harmon, Barry Shabaka Henley, Rizwan Manji, Masatoshi Nagase, Kara Hayward, Jared Gilma, Cliff Smith (a.k.a. Method Man) e Sterling Jerins.

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