Especial | Gênios dos Quadrinhos #4: Will Eisner

Saudações Geeks! Hoje o Gênio dos Quadrinhos não é dedicado a apenas um gênio, mas a uma lenda, um monstro, para muitos o  maior e mais importante nome dos quadrinhos de todos os tempos e ídolo de 11 entre 10 amantes da nona arte: o magnífico e inigualável Will Eisner.

Will Eisner

William Erwin Eisner nasceu no Brooklyn, Nova York, em 6 de março de 1917. Filho dos imigrantes judeus Fannie Ingber e Shmuel Eisner, os primeiros anos de vida do pequeno Will não foram fáceis: na escola, Eisner frequentemente se metia em brigas com os colegas que lhe dirigiam ofensas anti-semitas e em casa, a família sempre passou por dificuldades financeiras que só pioraram a partir de 1929 com a quebra da bolsa de valores e a Grande Depressão o que fez com que Eisner, aos 13 anos e incentivado pela mãe, começasse a trabalhar entregando jornais para obter dinheiro para ajudar a família.

Entretanto, como qualquer pessoa, Eisner tinha também seus momentos de lazer. O pequeno Will era um voraz consumidor de revistas pulp e filmes, inclusive filmes de vanguarda como os feitos por Man Ray. Isso fez com que Eisner nutrisse um grande interesse por arte, para desapontamento da mãe, que temia que o filho jamais conseguiria um “emprego de verdade” e seria alguém na vida, e alegria do pai que sempre sonhou em ser um grande artista e incentivava o filho comprando para ele materiais de arte. Suas principais influências, quando garoto, foram E.C. Segar (Popeye), George Herriman e Lyman Young (Tim Tyler’s Luck).

Quando ainda era um estudante no  Instituto DeWitt Clinton, Eisner deu seus primeiros passos como artista fazendo desenhos para o jornal da escola, o The Clintonian, assim como para outros materiais que circulavam pela escola como a revista literária  The Magpie e o livro do ano da instituição. Nessa época, quem também estudava nessa escola e colaborava com esses materiais era ninguém menos que Bob Kane,  o criador do Batman ao lado de Bill Finger anos depois, e colega de Eisner nesses materiais.

Após concluir o colégio,  Eisner recebeu um convite para estudar por um ano no Art Students League onde teve aulas com os lendários artistas George Bridgman e Robert Brachman. Valendo-se dos contatos obtidos no Art Students League, Eisner também conseguiu um emprego como escritor-desenhista no departamento de publicidade do jornal New York American, trabalhando das 9 da noite até ás 5 da manhã. Além de seu trabalho no jornal, Eisner atuava como freelancer fazendo ilustrações de US$10 por página para revistas pulp como a  Western Sheriffs and Outlaws.

Eisner eventualmente pediu demissão da New York American e seu próximo trabalho seria como editor de arte da revista Eve, um periódico voltado para mulheres judias, mas Eisner acabaria não durando muito no emprego sendo demitido por incluir desenhos de pugilistas e de outras temas considerados “violentos” e que iam contra o perfil da revista, irritando os donos da Eve.

Foi então que em 1936, aos 19 anos ainda e sob sugestão do antigo amigo de “high school” Bob Kane, Will Eisner tentou vender alguns de seus desenhos para uma nova revista em quadrinhos: a WOW, What A Magazine!. A tentativa foi bem-sucedida e Eisner vendeu para a WOW uma tira em quadrinho de aventura chamada Captain Scott Dalton, além de entrar para a equipe da revista e escrever e desenhar a tira de pirata The Flame e a tira de agente secreto Harry Kelly para a WOW. Nessa época, Eisner conheceu Samuel Maxwell “Jerry”  Iger, criador e dono da WOW, e desse encontro sairia uma das mais importantes parcerias para as historias em quadrinhos de todos os tempos.

Wow, What a Magazine! No. 3: Arte da capa feita por um jovem Will Eisner

O Eisner-Iger Studio

WOW! What a Magazine acabou tendo vida curta e foi encerrada poucos meses após sua criação deixando não apenas Eisner mas também o próprio Jerry Iger desempregados e sem dinheiro. Mas como dizem por aí, há males que vêm para o bem e a dupla de desempregados resolveu juntar seus talentos e dessa união nasceu o Eisner-Iger Studio. O propósito do Eisner-Iger Studio surgiu da visão e do conhecimento que Eisner e Iger tinham do emergente mercado de histórias em quadrinhos: já na metade dos anos 30, jornais e revistas já começavam a republicar quadrinhos já lançados e com o crescimento cada vez maior das publicações e do consumo, Eisner e Iger perceberam que em breve faltaria material original para ser publicado e criaram seu próprio estúdio justamente para criar material de quadrinhos originais e vende-los para jornais revistas e outras empresas que necessitavam disso.

O Eisner-Iger Studio mostrou-se uma empreitada bem-sucedida e contribuiu muito para o crescimento da industria de quadrinhos e popularização da mídia nos EUA. Com Eisner cuidando da parte artística e Iger da comercial, a dupla passou a fornecer quadrinhos originais para diversos jornais e editoras como Fox Comics, Fiction House, Quality Comics e outras empresas tanto americanas quanto canadenses e britânicas. Um titulo marcante feito por Eisner nesse período foi Hawk of the Seas, um derivado de The Flame da WOW, além de Sheena, Queen of the Jungle e Muss em Up.  A carga de trabalho era pesada e Eisner passou a usar variações mais simples de seu estilo usando vários pseudônimos.

Hawk of the Seas,  edição canadense, por Willis Rensie (Eisner ao contrário).

Eventualmente o estúdio contratou jovens artistas para auxiliar Eisner e muitos se tornariam nomes importantes dos quadrinhos norte-americanos nos anos seguintes: Bob Kane, velho conhecido de Eisner e futuro criador do Batman ao lado de Bill Finger, Lou Fine e Mort Meskin, grandes nomes da Era de Ouro e Prata, além de Jack Kirby, que dispensa apresentações, foram alguns dos jovens talentos que passaram pelo Eisner-Iger Studio. No auge de sua produção o estúdio era uma verdadeira “fábrica de HQs” que criava mais de 200 páginas de quadrinhos por mês e isso rendia bastante dinheiro para Eisner e Iger que chegavam a dividir um lucro de até US$25 mil, uma quantia considerável na época ainda mais com os EUA mergulhados na crise econômica, o que fazia Eisner dizer ter ficado “muito rico antes dos 22 anos”.

Infelizmente nem tudo foram flores para Eisner nesse período. Em 1939 Victor Fox, antigo funcionário da National Periodicals (hoje DC Comics) contratou Eisner para desenhar um personagem que ele havia criado, descrevendo para Eisner em detalhes suas feições, uniforme e personalidade do herói, batizado por Fox de Wonder Man. O problema é que o Wonder Man de Fox era um plágio do Superman e isso resultou em um processo movido pela National Periodicals. Antes da audiência, Fox ligou para Eisner instruindo o artista a dizer em seu depoimento que não havia nenhuma intenção de copiar o Superman, mas Eisner contou toda a verdade, a National ganhou a causa e Wonder Man foi tirado de circulação. Em retaliação Fox não pagou os US$3 mil que devia ao estúdio. Isso colocou o estúdio em dificuldades financeiras e Eisner e Iger acreditavam que falência era inevitável, e seria se a editora de pulps Fiction House não os tivesse contratado para desenvolver uma nova linha de quadrinhos.

No mesmo ano de 1939 Eisner recebeu uma excelente proposta do editor da Quality Comics Everett M. “Busy” Arnold para produzir 16 paginas semanais de quadrinhos para jornal. A contra-partida era que Eisner teria que se dedicar exclusivamente a isso, o que significava que ele teria que deixar o estúdio e a parceria com Iger. Depois de refletir e conversar com seu pai, Eisner vendeu sua parte do estúdio para seu sócio Iger e aceitou a proposta da Quality. Como o próprio falou sobre isso anos depois:

Arnold veio até mim e disse que os jornais dominicais estavam procurando uma maneira de entrar neste boom de quadrinhos. “Busy” me convidou para almoçar um dia e me apresentou a Henry Martin, gerente de vendas do The Des Moines Register e Tribune Syndicate, que disse: “Os jornais neste país, particularmente os jornais de domingo, estão querendo competir usando quadrinhos, e eles gostariam de obter uma página de quadrinhos nos jornais”…. Martin perguntou se eu poderia fazê-lo. … Isso significava que eu teria que deixar Eisner & Iger que estava ganhando dinheiro; Nós éramos muito rentáveis ​​naquele tempo e as coisas estavam indo muito bem. Uma decisão difícil. De qualquer forma, eu concordei em fazer a história em quadrinhos de domingo e começamos a discutir o acordo que era que seríamos sócios na ‘Seção de Quadrinhos’, como eles chamavam naquela época. E também, eu produziria duas outras revistas em parceria com Arnold. – Will Eisner, 1979.

A saída de Eisner do Eisner-Iger Studio para a Quality marcaria o inicio de uma nova fase na carreira do artista, fase essa que acabaria sendo mais marcante para os quadrinhos do que a anterior principalmente por ser na Quality que Eisner criaria aquele que é o seu mais famoso (e para muitos o melhor) personagem.

The Spirit

Logo após encerrar a sociedade com Jerry Iger e ir trabalhar para a Quality Comics, Eisner criou os personagens Doll Man, Uncle Sam, Lady Luck,  Mr. Mystic entre outros. No dia 2 de junho de 1940 estreava uma nova história em quadrinhos feita por Will Eisner, história essa que trazia o mais novo personagem criado pelo artista que dava nome para o quadrinho e se tornaria sua criação mais famosa: The Spirit.

Spirit por Will Eisner

The Spirit era um quadrinho policial e detetivesco protagonizado por um mascarado combatente do crime referido como “o único vigilante contra o crime proveniente da verdadeira classe média”. Na primeira história é apresentado o jovem detetive Denny Colt que aparentemente é morto nas primeiras três páginas da história. Entretanto, Denny “ressurge dos mortos” e assume a persona do vigilante mascarado Spirit.

Mais tarde, Denny confidencia ao seu amigo Dolan, comissário de polícia de Central City, que ele não morreu de fato mas ficou em estado de animação suspensa causada por uma experiência do seu arqui-inimigo Dr. Cobra. Ao despertar no cemitério de  Wildwood, estruturou ali sua base e, utilizando-se de seu anonimato, começou uma vida de luta contra o crime como Spirit, vestindo apenas uma máscara domino, terno azul, gravata vermelha, chapéu fedora e luvas. Em suas aventuras, Spirit é auxiliado por seu assistente Ebony White (um garoto negro criado por Eisner que infelizmente carregava muitos estereótipos racistas) e tem cobertura do comissário Dolan que dá a “benção” da policia para as ações de Spirit.

Desde o seu lançamento, The Spirit foi uma revolução. A começar pela forma em que as histórias eram publicadas: em vez das histórias estarem dispostas no interior do jornal em um caderno especial semelhantes aos demais suplementos, como os leitores estavam acostumados, a proposta de Eisner era de publicar as histórias em uma revista em quadrinhos de 16 páginas que vinham nos jornais como encarte. The Spirit correspondia 7-8 páginas da revista (que era propriamente chamada de “The Spirit Section”) enquanto as outras páginas eram completadas com histórias de outros personagens de Eisner, como Mr. Mystic e Lady Luck, que eram feitas por artistas assistentes que seguiram Eisner em sua saída do Eisner-Iger Studio.

Esse formato permitiu que Eisner usasse toda sua criatividade e genialidade em Spirit. Uma das inovações introduzidas por Eisner na narrativa gráfica das histórias era como ele integrava o titulo da revista como parte do cenário na abertura de cada história, o que chamava e prendia a atenção dos leitores desde a primeira página, Eisner também se destacou pelo uso inovador dos “splash-pages” –  uma imagem preenchendo uma página inteira como um cartaz – que muitas vezes deixavam a história mais emocionante e enchiam os olhos dos maravilhados leitores. Eisner também gostava de experimentar com a diagramação e disposição dos quadros, planos inusitados, composição das páginas e ângulos inquietantes (inspirado nos filmes noir que Eisner era fã) o que sempre resultava em gratas surpresas (como a história narrada através dos globos oculares de uma das personagens).

Na primeira imagem: Eisner abre a história com uma splash-page e traz o titulo da revista como prédios. Na segunda nos mostra o interior de uma casa onde cada quadro corresponde a um comodo dela: As inovações visuais de The Spirit nos quadrinhos 

Não era apenas por esses visuais que The Spirit se destacava: os roteiros e as histórias de Eisner eram fabulosos, apresentavam um nível de sofisticação maior que não era visto nos quadrinhos de super-heróis da época. Suas narrativas detalhavam o cenário e a vida em sociedade na cidade grande (com todas as suas mazelas) e apresentavam uma atmosfera noir também inspirada nos filmes que Eisner tanto apreciava. O traço de Eisner era primoroso e fluido, seus desenhos com cenários detalhados repletos de névoas, céus noturnos e esgotos fumegantes, personagens expressivos e cenas cinematográficas transpassavam perfeitamente o tom e atmosfera dos roteiros de Eisner. Spirit não era um personagem unidimensional e tinha uma profundidade que o tornavam bastante crível e identificável com o leitor.

A qualidade do traço de Eisner era incontestável 

Enquanto as histórias padrão da época sempre eram focadas no herói lutando com os vilões e vencendo no final em uma linha narrativa única, as histórias de Eisner não mostravam simplesmente o agente da lei e da ordem triunfando sobre o mal. Eisner inseria uma narrativa secundária que abordava um drama humano específico e real e muitas vezes essas narrativas eram o verdadeiro centro da história e o herói Spirit ficava em segundo plano, aparecendo pouco e de forma incidental, usado apenas para apresentar esses contos que, muitas vezes, destacavam a fragilidade humana frente a situações adversas e injustas na luta pela sobrevivência diária e a ironia da própria existência, e o próprio Spirit é colocado como uma vitima dessas adversidades e injustiças fazendo com que ele seja, nas palavras do escritor Javier Coma, além de um defensor da lei e solucionador de problemas também uma “testemunha impotente desta barbárie moral”. Mesmo violenta e passional, Eisner sempre colocava também humor em The Spirit, fosse sutil ou ostensivo.

O uso e desenvolvimento dessas características por Eisner em The Spirit tinham o objetivo claro de chamar tipos diferenciados de leitores para os quadrinhos, leitores mais velhos e mais exigentes com a qualidade das histórias e das narrativas gráficas, em contraste com o consumidor tipico de quadrinhos de super-heróis na época (que era em sua esmagadora maioria composto por crianças). Nunca foi a intenção de Eisner fazer de Spirit um super-herói. O personagem não devia nem usar mascara! Ela só foi adicionada por pressão dos editores que queriam que Spirit tivesse um “uniforme” para aproveitarem a febre de heróis fantasiados iniciada com o Superman em 1938. Sobre essa questão, Eisner disse:

 “…queria escrever histórias curtas. Eu sempre respeitei os quadrinhos como uma mídia legítima, minha mídia. Criando um detetive… eu conseguiria um veículo adequado para o tipo de histórias que eu poderia melhor contar . O pessoal do syndicate não concordava comigo… Em minha primeira discussão com ‘Busy’ Arnold, sua ideia se concentrava em um tipo de super-herói vestindo uma roupa uniformizada; nós não usávamos o termo “super-herói” naqueles dias… e eu argumentei veementemente contra isto porque eu já tivera minha cota de criação de heróis uniformizados na Eisner & Iger… Daí numa noite, por volta das três da madrugada, quando ainda trabalhava tentando encontrar algo — Eu tinha apenas uma e meia ou duas semanas para produzir a primeira revista, todo o negócio fora muito rápido e urgente — imaginei um herói fora-da-lei, apropriado, eu achei, para os leitores adultos”. – Will Eisner, 1978

“Eles me deram uma audiência adulta, e eu queria escrever coisas melhores do que super-heróis. As revistas em quadrinhos eram um gueto […] Eles queriam um personagem heroico e uniformizado. E perguntaram se teria um disfarce. Eu coloquei uma máscara nele e disse: “Sim, ele tem um disfarce!” – Will Eisner, 1997

Eisner ficou a frente de The Spirit até o final de 1941 (nesse ano, além do encarte dominical, o personagem ganharia tiras diárias no jornal) quando foi convocado para servir no exército dos EUA que acabara de entrar na Segunda Guerra Mundial. O personagem já era um grande sucesso e, durante a ausência de Eisner, outros artistas assumiram as histórias seguindo o estilo de Eisner e mantendo o sucesso de The Spirit cuja revista solo chegaria nas bancas em 1942. Após a guerra, Eisner retornaria ao personagem mas dessa vez na função de editor supervisionando o trabalho de outros artistas na revista The Spirit. A revista The Spirit seria publicada até 1952 e mesmo que outros talentosos artistas tenham passado pela revista, como Wally Wood e Lou Fine, as histórias feitas por Will Eisner são consideradas até hoje as melhores já feitas do personagem.

Os anos de guerra e pós-guerra

Durante a Segunda Guerra Mundial, o exército dos EUA tirou proveito das habilidades artísticas de Will Eisner. Ele foi designado para o  jornal do acampamento em Aberdeen Proving Ground onde produziu pôsteres, ilustrações e histórias propagandísticas para o exército norte-americano. Eisner criou o quadrinho educativo e o personagem Joe Dope para a revista Amy Motors e passou quatro anos no Pentágono editando a revista de artilharia Firepower além de fazer todas as ilustrações gerais para a Army Motors. Eisner também produziu manuais de prevenção de acidentes, manutenção de armamentos e primeiro socorros para os soldados do exército.

Com o fim da guerra em 1945, Eisner voltou para assumir o cargo de editor na nova revista de seu personagem: The Spirit. Nessa época, Eisner também tentou emplacar novas séries de quadrinhos como Baseball, John Law, Kewpies, e Nubbin the Shoeshine Boy; nenhuma delas foi bem-sucedida mas renderam materiais que seriam reciclados nas historias de Spirit.

The Spirit em 1947: Os artistas eram diferentes mas era Eisner quem ainda ditava os rumos do herói.

Foi durante seu período no exército que Eisner descobriu um novo filão para os quadrinhos: a produção de manuais, panfletos e ilustrações sequenciais com fins educativos e preventivos. Em 1948, ao mesmo tempo em que trabalhava na revista The Spirit, Eisner fundou a American Visuals Corporation, um estúdio-empresa nos moldes de sua antiga sociedade com Iger mas com uma área de atuação diferente: a produção de materiais instrucionais na forma de quadrinhos para o governo, agências relacionadas e empresas privadas.

A American Visuals Corporation foi mais um tiro certeiro de Eisner. Produzindo materiais instrucionais ou preventivos em forma de quadrinhos para clientes como Oil Filter Company, RCA Records, New York Telephone e o time da NFL (futebol americano) Baltimore Colts, Eisner faturou mais dinheiro do que nas épocas de Eisner-Iger Studio e The Spirit. Durante a Guerra da Coréia a partir de 1951, o exército norte-americano o convidou para realizar uma publicação semelhante a Army Motors durante a Segunda Guerra; assim surgiu a P. S. The Preventive Maintenance Monthly, uma publicação para prender a atenção dos soldados pela mistura de personagens de histórias em quadrinhos, anedotas, equipamentos falantes e um texto bastante informal, enfatizando sempre elementos gráficos e coloridos.

Primeira edição da P. S. The Preventive Maintenance Monthly: Eisner faturando alto com serviços para o exército

Eisner também ilustrou um panfleto oficial do Exército em 1968 e 1969 chamado The M16A1 Rifle especificamente para as tropas no Vietnã para ajudar a minimizar os problemas de confiabilidade do rifle M-16 com manutenção adequada. O estilo de Eisner ajudou a popularizar esses trabalhos oficialmente distribuídos, a fim de melhor educar os soldados sobre a manutenção do equipamento. Com o crescimento da empresa, da lista de clientes e da carga de trabalho, a American Visual Corporation foi tomando cada vez mais o tempo de Eisner que, com o fim da revista The Spirit a partir de 1952, passou a se dedicar exclusivamente para esses tipos de trabalhos ficando o resto da década de 50 e praticamente toda a década de 60 afastado das histórias em quadrinhos para o publico em geral.

Essa situação durou até o começo dos anos 70. Quando o editor holandês Olaf Stoop passou a reeditar e republicar as histórias de The Spirit, Eisner voltou a interessa-se pela criação de histórias em quadrinhos. Em 1972, vendeu a American Visual Corporation para se dedicar exclusivamente ao seu retorno às histórias. Entretanto, não era sua intenção fazer algo que já havia feito mais de 20 anos atrás. Will Eisner estava disposto a aprofundar e explorar todo o potencial da linguagem dos quadrinhos criando produtos com qualidade narrativa, gráfica e editorial alta, equivalente a verdadeiras obras literárias, e destinados especialmente a um publico adulto e mais exigente. Assim iniciou a terceira fase da carreira de Eisner, onde ele mais uma vez revolucionaria os quadrinhos ao introduzir e popularizar esses tipos de obras que se tornariam o “filé mignon”, o “crème de la crème” dos quadrinhos para muitos fãs, colecionadores e especialistas: as graphic novels.

A Era das Graphic Novels.

Em outubro de 1978 Will Eisner voltaria para o mundo das histórias com a publicação de sua mais recente obra: a graphic novel Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço lançada pela editora Baronet Books e que consistia em uma coletânea de quatro histórias, todas situadas em um cortiço no bairro do Bronx em Nova York nos anos 30, baseadas em pessoas que Eisner conhecera em sua infância e adolescência.

Primeira edição de Um Contrato com Deus de 1978: O retorno em grande estilo de um gênio.

Em sua nova obra Eisner fugia do formato original de contar histórias em quadrinhos trazendo elementos ao qual os leitores não estavam acostumados a ver: sua narrativa gráfica evitava usar o quadro-a-quadro para contar a trama, utilizava splash-pages para pontuar momentos mais dramáticos e emocionantes além de seus roteiros apresentarem uma profundidade e sub-texto visto em pouquíssimos quadrinhos na época (e mesmo nos anos seguintes). A história titulo da graphic novel, Um Contrato com Deus, é particularmente notória por ter sido feita sobre os sentimentos de  Eisner com a morte de sua irmã Alice aos dezesseis anos por leucemia.

Cena de Um Contrato com Deus: Mais uma vez, Eisner criava uma narrativa gráfica inovadora.

Além disso tudo, Um Contrato com Deus destacava-se pelo formato especial em que foi publicada: um tomo único com lombada quadrada, capa dura com papel especial de maior qualidade, tiragem limitada de 1.500 cópias e distribuição para livrarias e lojas especializadas que não costumavam vender quadrinhos. Não foi fácil para Eisner conseguir um editora que estivesse disposta a publica-la dessa maneira, tendo sido rejeitado algumas vezes por as editoras ainda verem Um Contrato com Deus como uma simples HQ, motivando a Eisner a passar a se referir a sua obra como uma “graphic novel” o que fez com que fosse creditado a Eisner a criação do termo. Sobre isso, o próprio Eisner dizia de forma humorada em várias entrevistas:

 Eu estava sentado ao telefone, conversando com este sujeito [editor], e eu disse: “Eu tenho uma coisa nova para você, uma coisa muito nova”. E ele disse: O que é? E eu olhei para ela e me dei conta de que se eu falasse, “Uma história em quadrinhos”, ele desligaria. Ele era um sujeito muito ocupado, e aquela era uma editora de alto nível. Por isso, eu a chamei de romance gráfico (graphic novel), e ele disse, “Oh, isto é interessante. Traga aqui!” Eu levei. Ele olhou para ela, olhou para mim por cima de seus óculos de leitura, e disse, “Você sabe, ainda é uma história em quadrinhos. Nós não podemos publicar esse tipo de coisa.”  – Will Eisner

Um Contrato com Deus não foi um sucesso imediato, mas aos poucos sua qualidade foi sendo reconhecida e seus status como grande obra foi se solidificando principalmente através de sua aceitação entre o publico adulto o que lhe garantiu sucessivas reimpressões. Apesar de não ter sido o criador do termo “graphic novel”, o termo já havia sido utilizado por Henry Steele na revisa Fantasy illustrated em 1966, e de Um Contrato com Deus não ter sido a primeira graphic novel norte-americana,  Jungle book de Harvey Kurtzman e Beyond time and again de George Metzger foram graphic novels publicadas anteriormente, foi Will Eisner, com seu prestigio editorial e atuação mercadológica, a figura seminal na disseminação e popularização do termo, no estabelecimento e sucesso deste formato de publicação e na quebra definitiva da noção de que histórias em quadrinhos eram uma mídia voltada exclusivamente para crianças.

Nos anos e décadas seguintes, Eisner traria outras graphic novels com histórias e artes belíssimas como Life on Another Planet (1978), O Sonhador (1986), O Edifício (1987), Pessoas Invisíveis (1992)Assuntos de Família (1998), Pequenos Milagres (2001)O Nome do Jogo (2002), e aquela que é considerada por muitos (inclusive este que vos escreve) não apenas sua grande obra-prima mas também a melhor graphic novel genuína  de todos os tempos: Ao Coração da Tempestade (1991), seu quadrinho semi-auto-biográfico que conta a saga de um judeu convocado para a guerra e sua família e é um retrato da própria história dos judeus na América.

Ao Coração da Tempestade: A obra-prima máxima de um gênio.

Além de suas obras autorais, Eisner também enveredou por outra searas: as adaptações em quadrinhos de grandes clássicos da literatura e o ensino da arte dos quadrinhos. Assim, Eisner levou para a linguagem dos quadrinhos obras como Moby Dick, Dom Quixote de La Mancha e A Princesa e o Sapo – além de adaptar lendas populares de culturas africanas como Sundiata, O Leão de Mali – e escreveu dois dos melhores livros teóricos sobre quadrinhos para quem queria estudar e aprender sobre a nona arte (e são utilizados até hoje): Os Quadrinhos e a Arte Sequencial e  A Narrativa Gráfica. Eisner também lecionou Técnicas de Quadrinhos na School of Visual Arts em Nova York entre 1973-1979.

Lições de quadrinhos por Will Eisner.

Will Eisner foi um autor prolifico lançando graphic novels em uma frequência próxima de uma por ano até o fim de sua vida. O grande gênio faleceu no dia 3 de janeiro de 2005, aos 87 anos, devido a complicações cardíacas depois de uma cirurgia. Apenas um mês antes, havia finalizado e entregado para seu editor sua última contribuição para os quadrinhos e que seria publicada postumamente: a graphic novel O Complô: A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião, que abordava a farsa dos Protocolos dos Sábios de Sião, obra que durante o século 20 foi extensivamente usada para propagandear o anti-semitismo.

O Complô: A despedida de Eisner dos quadrinhos e da vida.

 Por toda a sua obra ao longo da vida, Will Eisner é reconhecido e aclamado por muitos como o maior nome das histórias em quadrinhos de todos os tempos sendo mencionado diversas vezes como o “padrinho” dos quadrinhos americanos e como o “Leonardo” dos quadrinhos (em referência a Leonardo Da Vinci) pelo seu visionismo tanto artístico quanto editorial/mercadológico e todas suas inovações na nona arte. Will Eisner é talvez a maior influência para incontáveis quadrinistas de praticamente todas as gerações que surgiram depois dele. Apenas para citar alguns nomes temos: Alan Moore, Neil Gaiman (que já escreveram histórias de The Spirit), Frank Miller, Darwyn Cooke, Art Spielgeman, Michael Chabon, Scott McCloud, que se inspirou nos livros teóricos de Eisner para escrever sua famosa obra teórica Desvendando os Quadrinhos, Paul Levitz, Scott Shaw e Mike Allred são apenas alguns exemplos de quadrinistas cujas obras têm forte influência de Eisner. Jack Kirby, que trabalhara para Eisner na época de sua sociedade com Iger, dizia que o aprendizado obtido com Eisner foi de vital importância no seu amadurecimento como artista.

A genialidade de Eisner também é reconhecida fora dos EUA. A escola européia de quadrinhos, lar de grandes nomes como Moebius, Gian Luigi Bonelli, René Goscinny e vários outros com seu estilo particular bem distinto dos americanos, reverencia Will Eisner como um dos maiores gênios da narrativa gráfica. Eisner chegou inclusive a receber o segundo Grande Premio de la ville d’Angoulême em 1975, um dos mais prestigiados prêmios dos quadrinhos europeus franco-belgas (e Eisner não era francês e nem belga!).

Eisner também visitou o Brasil algumas vezes (sete para ser exato) e em uma dessas visitas foi recebido no aeroporto pelo famoso quadrinista brasileiro Ziraldo, autor da obra “O Menino Maluquinho”, que tremia de nervoso ao conhecer Will Eisner e contou sobre esse encontro:

Eu estava conhecendo aquele que mais povoou a minha imaginação infantil, e me inspirou a ser o que eu sou hoje (Ziraldo)

Além desse prêmio, Eisner foi premiado com o Comic Book Award da National Cartoonists Society nos anos de 1967, 1968, 1969, 1987 e 1988, assim como recebeu o Story Comic Book Award em 1979 e o Reuben Award em 1998. Eisner também foi introduzido no Academy of Comic Book Arts Hall of Fame em 1971 e no Jack Kirby Hall of Fame em 1987. Em 1988, Eisner foi homenageado com a criação de sua própria premiação: o Will Eisner Award. Entregue todos os anos durante a San Diego Comic-Con, o Will Eisner Award é considerado o prêmio mais importantes da industria de quadrinhos dos EUA sendo chamado de “O Oscar dos quadrinhos” (e o próprio Eisner faturou alguns prêmios com seu nome ao longo dos anos).

Eisner ganhou uma biografia lançada em 2005, mesmo ano de sua morte, intitulada Will Eisner: A Spirited Life escrita por  Bob Andelman e um documentário produzido por Andrew e Jon B. Cooke, chamado Will Eisner: Portrait of a Sequential Artist, lançado em 2007. Ao lado de Jack Kirby, Robert Crumb, Harvey Kurtzman, Gary Panter e Chris Ware, Eisner foi um dos homenageados da exposição “Masters of American Comics” do Jewish Museum de Nova York ocorrida de setembro de 2006 a janeiro de 2007. E neste ano de 2017 em que Will Eisner completaria 100 anos se estivesse vivo, diversos quadrinistas de todo o mundo tem prestado seu tributo ao grande gênio e a Society of Illustrators realiza uma exposição em sua galeria em Nova York em homenagem ao centenário de Eisner iniciada no dia 1º de março e que vai até o dia 3 de junho.

Uma singela homenagem de Mauricio de Sousa para o centenário de Eisner

Mais do que um Gênio dos Quadrinhos, Will Eisner é um gênio da arte e da literatura. A sua firme crença de que os quadrinhos, assim como o cinema, a musica e outras formas de arte, podiam abordar todos os aspectos da vida e atingir de forma única pessoas de todas as idades e todos os lugares, foi o que fez Eisner dedicar sua vida totalmente para o desenvolvimento e divulgação das histórias em quadrinhos. Todo essa dedicação e amor recompensaram Eisner com uma coisa: A imortalidade no coração dos fãs de todas as gerações em todo o mundo.

Para sempre Will Eisner

É isso aí pessoal! Espero que tenham gostado do post. Não deixem de comentar quais obras de Eisner vocês mais gostam. E pra quem quer conhecer mais dessa Lenda, algumas de suas graphic novels podem ser encontradas em lojas como Saraiva e Amazon, além do livro Will Eisner: Um Sonhador nos Quadrinhos que é uma nova biografia do Will Eisner escrita por Michael Schumacher (não, não é o piloto) que traça toda a trajetória de vida do Eisner e abarca até momentos menos conhecidos dele. Grande abraço e até a próxima!

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